segunda-feira, 22 de março de 2010

RAP/LITERATURA


Edvaldo Silva


Muitas letras de Rap, escritas em prosa em papel impresso, dariam ótimas crônicas e contos. Trazem também personagens, histórias e acontecimentos que daria para escrever diversos romances. A música Edvaldo Silva é uma delas. Essa música foi gravada pelo grupo Ao Cubo em seu primeiro álbum: Respire Fundo. A letra conta a história de um morador de rua. Já nos primeiros versos podemos observar a riqueza na descrição da narrativa:

“Lá no fundo sombrio de um bar cheio de mosca
Camisa quadriculada por fora da calça larga e fosca
Barba melada de leite que escorria pela boca,
E a baba de outros dias marcada na roupa”...


Edvaldo Silva lembra com amargura seu passado. Seu pai havia transformado o barraco num puteiro e ponto de venda de droga. Ali ele vendia o corpo da própria esposa nas noites de festança e bebedeira que promovia em casa. Ao saber dos planos do marido de vender o corpo do próprio filho, sua mãe Dona Vilma embarca ele num ônibus e o manda para a capital paulista. Ali Edvaldo Silva vai morar na rua e mendigar para poder sobreviver. E assim era a sua rotina:

“Diariamente escala o escadão até o último degrau como se fosse um trabalho
Senta e descansa a sacola, abre a camisa e tira o sapato
Do alto olha o asfalto e toda correria das pessoas nos carros,
Assim o dia passa mais rápido é como um atalho”...


Invisível como todo morador de rua, Edvaldo faz desse ritual a sua terapia, para criar um atalho na própria vida:

“Fica lá de cima contando o sino da estação soar várias vezes,
Trem chegando, partindo, as mesmas pessoas passam como fregueses
Chega a ser quase invisível se não fosse o desprezo de muitos deles,
Edvaldo chora por dentro o choro de meses”...

Ao notar as pessoas virando o rosto quando o vêem, se imagina como a paisagem pior que um tapa no rosto. A música é narrada em 3° pessoa, mas tem algumas intervenções do Edvaldo em 1° pessoa. Em uma delas ele se indigna com a sua miséria e com essa sociedade refém de um sistema que cria tantas desigualdades:

“Tenho vergonha da minha miséria, que tortura que é a fome,
Ela se alimenta de pele escura, de pele amarela, mas pele de pobre
Como um golpe forte, três pontas de chicote,
Que invade a carne com um corte...
Os que passam e me chutam, provavelmente são criados na cela,
Como animais de um condomínio que a janela
Tem grades pra se protegerem da favela,
Estou ferido, tem valentão que me taca pedra...
Uns tem muita grana, e são chamados de rico,
Outros dormem na lama e são confundidos com lixo,
Ser humano é isso, acredite não é bicho,
No fim apodrece com ou sem distintivo”...


Um certo dia Edvaldo recebe um panfleto de uma moça. O panfleto evangélico trazia uma imagem que o agradou muito, pessoas de mãos dadas, felizes, bem diferente de sua vida. Ele encontra outros panfletos jogados no chão e faz uma comparação com o que tem na sua mão. Ele vê que os dois panfletos são iguais, sem nenhuma exceção. Então isso o remete a sua própria vida. Se todos somos iguais, então porque tem uns bem protegidos e outros jogados pelo chão, vivendo uma vida indigna? Ele se espanta também pela moça ter entregado o panfleto pra ele, um morador de rua, sujo e cheirando mal. E quando passa em frente a igreja se espanta mais ainda, a moça pega em sua mão e o convida para entrar.

A música continua no outro álbum do Ao Cubo, intitulado: Entre o Desespero e a Esperança. A narrativa da música que é chamada: Edvaldo a Origem, mais uma vez começa muito bem:

“Uma casa simples alugada a alguns meses,
Numa rua calma no numero 13
No portão pequeno: “vende-se biju”,
Fachada apagada, branca e azul
Em cima do muro um bichano circense,
Quando o latido vira-lata não convence
Roupa pendurada no varal de bambu,
E a sombra preguiçosa do pé de caju
Dois degraus e o chão vermelho desenha,
Uma cozinha perfumada pelo fogão a lenha
Quem tem a senha ta de costas na pia,
De chinelo de borracha e avental de bolinha”...

Procurem as letras na internet, vale a pena ler a letra toda.





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