quinta-feira, 17 de junho de 2010

MEMÓRIAS DE UM EX-TORCEDOR



Terça-Feira, três horas da tarde, a favela do Cidade Nova assiste com entusiasmo a estréia da seleção brasileira na copa do mundo. Várias crianças pelas ruas, algumas com camisetas da seleção, buzinas e apitos, fazendo a festa; curioso que não estão assistindo o jogo, estão aproveitando o ritmo de festa para brincar, brincam de torcer pro Brasil e volta e meia vão até em casa para perguntar quanto está o jogo e depois voltam pra rua correndo gritando o resultado. Eu estou no quintal de casa, cortando o mato da minha horta, para logo mais preparar a terra para o plantio desse ano. A última copa do mundo que assisti foi a de 1994. Na época eu morava no Jd. Paraná e confesso que o dia que vi minha favela mais feliz foi na final da copa de 94. Depois continuou tudo como era antes, os perrengues, as dificuldades na vida, a violência policial, o preconceito da sociedade com a favela, apesar de os melhores jogadores ter vindo dos campinhos de terra das favelas. Quatro anos antes, no ano de 1990, a violência assombrava nossa favela, e minha família – como a maioria da favela – passava por muitas dificuldades. Nessa época eu cuidava de carro na Vila A para ajudar na renda de casa. Durante a copa daquele ano eu faturei uma boa grana, pois além de cuidar dos carros eu vendia bandeiras e adesivos da seleção brasileira. A cor verde-amarelo também esteve presente nos adesivos dos políticos durante a campanha eleitoral que elegeu Fernando Collor - o primeiro governo civil brasileiro, eleito por voto direto desde 1960. E mais adiante o verde e amarelo eram as cores que se viam pintados nos rostos dos jovens, embalados pela Rede Globo e pela elite, pedindo o impeachment do presidente corrupto Collor.

Desde criança eu gostei muito de futebol e boa parte do dinheiro que eu ganhei cuidando de carros foi para preencher meus álbuns de figurinha com temas ligados ao futebol. Jogava bola todos os dias na favela com meus amigos e cheguei a disputar alguns campeonatos. Comecei a torcer pro Internacional de Porto Alegre depois que tive acesso a história do Clube, até então eu não tinha um time definido, torcia pelo bom jogo, independente de que time ganharia. Eu torcia pelo gol e também por boas defesas dos goleiros, que era a posição que eu atuava. Eu perdi meu pai muito cedo, e geralmente a gente herda o time do nosso pai. Comigo foi diferente, me identifiquei com o Inter, um time do povo, formado por jogadores negros numa época em que o futebol era bem mais racista; seu mascote: o Saci Pererê. Eu fui um torcedor fanático, pegava um radinho velho que minha mãe tinha, e ficava um tempão tentando sintonizar a rádio Guariba do Rio Grande do Sul, para escutar os jogos do Internacional. Eu anotava tudo num caderninho: a renda do jogo, o nome do juiz e bandeirinha, a escalação do time, quantas faltas/escanteios/laterais/tiros de meta/ cartões amarelos e vermelhos teve pra cada time e tinha uma memória fotográfica pras coisas do futebol. Um amigo de escola, que vinha me perguntar tudo a respeito de futebol, me apelidou de Galvão Bueno. Sorte que o apelido não pegou. As primeiras músicas que eu fiz foi sobre futebol, isso no início da década de 90. Eu escrevia uns funks zuando os times de futebol, levava na rua, chamava a galera e começava a cantar. Os amigos gostavam e davam risadas, mas, quando chegava no time deles, aí ficavam de cara. Depois comecei a desenhar os mascotes dos outros times vestidos com o uniforme do Internacional. Eu levava na rua e falava: “aí, seus vira-casaca”.

Não me lembro muito bem o dia que eu desanimei com o futebol. Sei que com o tempo fui desgostando. Comecei a perceber como as elites se apropriaram do futebol para enriquecer cada vez mais, submetendo a favela à miséria e ao descaso. Os times, que antes investiam nas divisões de bases, passaram a montar super-times com o dinheiro de super-patrocinadores e os jogadores passaram a jogar por amor ao dinheiro e não mais por amor à camisa. Torcedor do Internacional vai jogar no Grêmio, Corintiano vai jogar no São Paulo, Flamenguista vai jogar no Vasco e assim por diante, por causa de um salário maior. E assim vão se formando times com jogadores que não tem nenhum vínculo com aquele clube ou aquela torcida. As seleções que disputam copa do mundo são escaladas, boa parte, pelos patrocinadores. As empresas se aproveitam muito bem das competições para vender seus produtos: “Goleadas de preços baixos”, “Dando um olé nos preços altos”, “Seleção de ofertas”, “Empresa tal junto com o Brasil nessa copa”. Hoje, empresas que escravizam a mão-de-obra infantil patrocinam times de vários países e vendem seus produtos aproveitando-se da paixão do povo pelo futebol. Sem falar na manipulação de resultados, nas injustiças dos campeonatos que beneficiam os clubes ricos e dezenas de outras paradas que me desanima. As copas do mundo já serviram a ditadura militar em vários países. Na África do Sul favelas foram removidas para embelezar as cidades onde acontecerão os jogos. Sem falar na tal “limpeza social”, nas remoções, nas ocupações e nas chacinas praticadas pela polícia do Rio de Janeiro, preparando o terreno para a Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Para mostrar um Brasil “pacificado”.

Pelo andar da carruagem essa será mais uma copa do mundo que não contará com meu ibope.

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