domingo, 1 de agosto de 2010
FUNK É RAP? (Por: Danilo Georges).
No ano passado o percussor do movimento Hip-Hop Afrika Bambata em visita a Rocinha - maior favela da América latina - deu a seguinte declaração: “A batida do funk é hip-hop, o hip-hop do Brasil tem que agregar o funk como quinto elemento”. A frase de Bambata repercutiu muito no movimento Hip-Hop, e parece ter causado estranhamento aos manos naquele momento. Eu estava em Foz do Iguaçu-PR quando encontrei meu amigo e irmão de hospício, militante do coletivo Cartel do Rap, Mano Zeu de sobrancelha baixa, lendo a revista Rap Brasil e preocupado com a fala de Bambata, naquela ocasião ele deu a seguinte opinião “o que é isso aqui mano, funk virar hip-hop, não vai rolar”. Para mim essa idéia também não se sustentava, na minha visão como é que o Funk que se apresentava como uma música de curtição ia se misturar com o Rap uma música que bate de frente e denuncia às mazelas sociais. Mas passado alguns meses eu e Zeu viemos fazer um curso de formação de Agentes Culturais Populares no Rio de Janeiro e lá descobrimos que também há funk's de protestos, uma música que também retrata a vivência e sobrevivência da periferia, e que pautam uma série de noções reivindicatórias para essa classe periférica. Assim conhecemos um outro tipo de Funk que não é o que é vinculado pela grande mídia, não é o que vende milhões e nem será encontrado com a mesma facilidade nas lojas de discos e shoppings. Esse Funk mais politizado tem uma proporção muito menor ao funk estilo “cachorrão” que toca diariamente nas rádios e movimentam as baladas e boates em Foz do Iguaçu. Assim percebi que nossa visão sobre o Funk foi modificada, e de que na verdade vimos o Funk num sentido único e homogêneo, não conhecíamos outro tipo de Funk e pensávamos que nesse gênero predominava a música para festa, agitação e curtição. Tive a oportunidade de conhecer o outro lado da moeda do Funk, o que hoje me agrada muito, o Funk com um caráter reivindicatório que aparece como uma forte expressão daquela parte da cidade que é constantemente criminalizada.
Sabendo que há muito preconceito desse gênero por parte de pessoas ligadas ao Hip-Hop e que muitos vêem no Funk um caminho de mão única, a música com batida contagiante e com pouco conteúdo, e nomes como Bonde do Tigrão, Tati Quebra Barraco, MC Creu, entre outros, vêm sempre a mente, parece que esses são os artistas frente ao movimento e nomes como Cidinho e Doca, Mascote entre outros foram apagados e silenciados da nossa memória. Resolvi apresentar aqui um outro Funk rompendo com essa modinha de mulher fruta que aparece diariamente na televisão. Dessa forma selecionei três letras para repensarmos o Funk Carioca e fazer uma discussão se o Funk é Hip-Hop ou não. A primeira música é do MC pingo do grupo Força do Rap do complexo de Acari e diz assim:
“Quem é você para falar dos meus erros,
tu não me conhece não sabe quem sou
a luta que tive, a fome que minha família passou
aonde tava você na hora do perrengue,
porque você não tava lá seu doutor?
a sociedade hoje fala de mim mais ninguém me ajudou
todo mundo fala que eu ando armado,
ninguém fala que já tentou me matar
o tempo que o rodo subia o morro pra assassinar
e eu na favela botando o terror
para matar os moleque pegar o dinheiro
desculpa doutor para chorar minha mãe
chora a deles primeiro
Lá no morro o barraco na chuva descia,
mamãe lavadeira trabalhava em casa de família
papai desempregado piorava a situação,
alcoolizado na rua sempre de agressão
Não tive chance pois não nasci herdeiro não,
só fiz o que achei certo peço a Deus o perdão
é assim que o moleque dizia,
é assim que o moleque falava
no beco de uma favela
pra um repórter que o entrevistava”.
A música retrata a vida de um jovem da periferia Carioca, mostrando desde as principais dificuldades como a fome até a desestrutura familiar com o pai alcoólatra e a mãe que trabalha fora, lavando roupa para a família da classe média. No decorrer da canção até a chacina e violência policial são questionados assim como a condição de moradia precária, entre uma gama de sentidos narrados pela experiência de muitos jovens oriundos da periferia, a música ainda revela um diálogo entre um repórter e um moleque favelado que desabafa: “não tive chance, não nasci herdeiro, só fiz o que eu achei certo”, revelando uma vida desregrada que culminou no seu envolvimento com o crime. Agora vamos pegar o segundo exemplo, o do Mc Bacardi, morador da Cidade de Deus.
“ Mas a política que tem aqui
parece feita para não me defender
se for pretinho não tem caô
na saída leva uma geral
se não tiver nada, mas se eles cismar
fala pra ir embora ou me dá um pau
eu já não agüento, tanto tormento
eu não to conseguindo viver
quero a paz tranqüilidade
andar na fé CDD
vejo muitas crianças aqui sofrer
por que não tem nada para se ocupar
nem projeto e alimentação
e escola para estudar
será assim que vai melhorar
estão deixando nossas crianças em vão
mãe me desculpa a decepção
hoje seu filho virou ladrão
eu fico triste abaixo a cabeça
e logo começo a pensar
se no meu futuro Deus vai me ajudar
por que meu filho eu pretendo criar
Perdi vários manos estou boladão,
tenho certeza que não vão mais voltar
descanse em paz todos amigos
que estão nesse lugar
mano Menor, mano Gu,
não esqueço do Cabeção
do Alex, Zequinha e do Negão
Fico por aqui deixo um abraço
para todos negros do Brasil
Djavan, Toni Garrido
e meu mano Mv Bill
Eu sou negro, eu sou negro sim
tenho orgulho de onde moro
e também tenho orgulho de mim
sou funkeiro, sou funkeiro sim
tenho orgulho de onde moro
e também tenho orgulho de mim
Sou favela, sou favela sim
tenho orgulho de onde moro
e também tenho orgulho de mim”.
A música de Bacardi tem um traço de pertencimento e de amor com o seu lugar, apesar das dificuldades e do descaso do governo perante os moradores da periferia, esse orgulho e afirmação de ser negro e favelado é algo muito cantando e representado também no Rap. A linguagem é muito comum ao Rap quando ele narra os Manos da CDD que se foram, aqui podemos perceber que esse Funk não está nem um pouco distante do Rap, a mensagem caminha num sentido de desabafo aonde um morador percebe a vitimização de seus irmãos e do envolvimento de crianças com o crime, e se preocupa com o seu futuro, “como meu filho será criado nesse meio”.
A última canção escolhida é da dupla Mc Junior e Leonardo da rocinha e diz assim:
“Comunidade que vive a vontade com mais liberdade tem mais para colher
pois alguns caminhos para a felicidade são paz, cultura e lazer
comunidade que vive acuada tomando porrada de todos os lados
fica mais longe da tal esperança, os menor vão crescendo tudo revoltado
Não se combate crime organizado mandando blindado para beco e viela
pois só gera mais ira, para os que moram dentro da favela
Sou favelado e exijo respeito, são meus direitos que peço aqui
pé na porta sem mandado, tem que ser condenado não pode existir
Mãe sem emprego, filho sem escola, é o ciclo que rola naquele lugar
são milhares de histórias, que no fim são as mesmas podem reparar
Sinceramente eu não tenho a saída, como devia o tal ciclo parar
mas do jeito que estão nos tratando só tão ajudando esse mal se alastrar
morre policia, morre vagabundo e no mesmo segundo outro vem pra ocupar
o lugar daquele que um dia se foi, depois geral deixa para lá
agora amigo o papo é contigo, só um aviso para finalizar
o futuro da favela depende do fruto que você vai plantar
Refrão:
Ta tudo errado, até difícil de explicar
do jeito que a coisa ta indo já passou a hora do bicho pegar
ta tudo errado, difícil entender também
tem gente plantando o mal querendo colher o bem”.
Nessa musica á o sentido de reivindicação da liberdade para os favelados, a palavra favela é constantemente repetida nos versos, a idéia do ciclo vicioso perverso que envolve o dia a dia da periferia e deságua no sofrimento e deterioramento da classe pobre culminando no extermínio de vidas. A violência do Estado é completamente combatida nessa música, fazendo menção que a única participação do estado na favela é pela força policial, e que isso só ajuda as coisas piorarem, trazendo a revolta e dor aos moradores da periferia.
Pegando esses três exemplos vemos que seguindo essa linha de Funk e se compararmos com a letra do Rap combativo, (lembrando que há muito rap comercial também), vemos que tem uma grande semelhança, uma narrativa que caminha num sentido par com o Rap e que aparece como forte expressão da juventude favelada brasileira. Questões que parecem ser pontuais no Rap como violência, desemprego, pobreza, falta de opção para a juventude favelada, preconceito, descaso do governo, violência policial, assim parece que tanto o Funk como o Rap diagnosticam e denunciam os mesmos problemas e revelam a adversidade diária de morar na favela.
Quando Bambata diz que Rap é Funk originalmente ele disse isso pela batida, mas creio que o Rap e Funk se aproximam não somente pela batida, mas pela própria origem do movimento, as letras, rimas, os atores sociais são da mesma procedência e carregam consigo o mesmo drama da exclusão social, do afastamento, preconceito e da barbárie.
Vejo o movimento Funk como mais uma voz da periferia e também como uma grande possibilidade de transgressão dessa sociedade desigual e que age como um forte multiplicador de vários sentidos e significados que mapeiam a experiência periférica, assim penso e reflito: será que o Funk é Rap ou Rap é Funk?
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